domingo, 4 de maio de 2014

Canos Azuis. Érick Freire.

1 comentários
Grandes fendas abriam no chão e formavam crateras, era o que acontecia quando chovia forte onde eu morava quando era criança, além das crateras que eram a festa da criançada no meio da rua, apareciam canos azuis enormes, era impressionante! Pareciam com enormes dutos. Corríamos em cima deles, equilibrávamos-nos, eram lisos e escorregadios, tinham pelo menos uns oitenta centímetros de altura, as crateras nas ruas de barro chegavam a quase dois metros de profundidade. Era uma festa. Às vezes parávamos e púnhamos os pés nos canos para sentirmos a força da água passar por eles. Eram bem geladinhos, gostoso de sentir.
Chão de terra batida, barro e pedregulhos. Assim eram as ruas da minha infância. Corríamos soltos na rua, não passavam carros. Éramos livres e felizes, felicidade de criança indescritível e inimaginável para as crianças dos dias atuais. Não tínhamos games. Não tínhamos i-phones, i-pads, smartphones. Nossas redes sociais eram realmente sociais e nada virtuais. Os momentos eram únicos, corríamos na rua o dia todo – bandeirinha, garrafão, tica-tica, esconde-esconde, cuscuz, biloca (bola de gude), futebol no meio da rua que chamávamos de mirim nome indígena para pequeno por causa das traves pequenas geralmente feitas com um tijolo ou até mesmo com um par de sandálias. Roladeira de lata de leite Ninho, fileiras de latas engatadas por arames e barbantes. Os carrinhos nós mesmos fazíamos, usámos aspas, madeira, resto de lata e etc. O carrinho de Rolimã era a sensação!
Amigos daquela época até hoje encontro, ontem mesmo falei com um que tinha um apelido muito engraçado e histórico. Na época que o conhecemos a propagada da vez era o caldo knnor, como o nome dele era Cláudio o seu pseudônimo era carinhosamente Cláudio Knnor. Foi o meu melhor amigo de infância. O seu apelido não era mais engraçado ou constrangedor que o meu, chamavam-me de Pamonha, só porque eu era o mais lento e quase sempre o último. Nem sabíamos o que era Bullying, por isso levávamos na boa, era só brincadeira e não lembro de nenhum desvirtuado por causa disso.
Hoje, a rua Acaraú¹ é calçada e não é mais de barro batido, tampouco sofre com inundações e crateras, foi saneada e calçada com paralelepípedos de basalto, anos depois foi capeada com piche ou breu visco elástico de origem petrolífera que betuma o piso da rua e impermeabiliza. Deixando então na saudade aqueles canos azuis, nostalgia daqueles tempos, adeus canos azuis. Não poderei mais te pisar, não te verei mais, não sentirei a água passando e vibrando em ti. Aquele friozinho vibrante embaixo dos pés só ficou na memória. Porque a velocidade dos carros passam por cima da terra e do piche que te cobrem. Saudade, saudade, saudade...
Canos azuis, céu azul, nuvens brancas, infantilidade que se foi, saudade que ficou no coração-mente, meus irmãos menores, meu primo mais velho que eu. Jacó, Emanuel e Pierre são eles. Que saudade daqueles tempos! Nostalgia saudosista da saudade perdida nos ventos do tempo azul. E tempo tem cor? Tem. Cheiro também, cheiro de barro molhado pela chuva e também pelo cano estourado que servia de chafariz para meninos descamisados.
Saudade Panatis² dos teus dias de glória que teus filhos saiam na rua sem medo de algum louco desvairado e violento, sem medo de ser atropelado por um insano embriagado ou por um alucinado por velocidade. Saudades daquele tempo que saiamos na rua nas férias de manhã cedinho e só voltávamos à tardinha porque a nossa fome era pela pelota redondinha ser o artilheiro do dia. Dificilmente eu conseguia, ficava mais de goleiro. Saudade daquele tempo do cheiro da grama verdinha, da poeira esvoaçante na hora do chute rasante direto às traves lancinantes porque a bola sempre insistia em não entrar, mas quando entrava era alucinante, vibrava como em uma final de copa do mundo!
Naquele tempo as coisas não eram tão fáceis. Muitas vezes ia almoçar na casa da minha vó que morava em uma rua paralela a nossa, lá em casa não tinha almoço, no máximo um ovo e farinha. Calada minha mãezinha ficava e nos mandava para a casa da vovó, inocentemente meus irmãos não percebiam, mas eu entendia que minha mãe ficaria mais um dia sem almoçar se a vovó não mandasse uma quentinha com o que sobrou do almoço. Meu pai não podia fazer nada. Era funcionário do estado, a inflação era alta. Um pacote de cuscuz era um preço pela manhã, à tarde já era outro, a inflação corroía o salário do trabalhador e ainda por cima Geraldo Melo e José Agripino eram grandes proteladores dos salários. Enfim, sempre vovó foi inteligente e percebia tudo. Dificilmente mamãe ficava sem almoço, mas de uma coisa tenho certeza, se fosse preciso ela ficaria com fome, mas nunca nos deixaria famélicos.
Érick Freire
Pedagogo e escritor

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¹ Palavra de origem tupi que significa comedouro do Acará (peixe), ou Acará preto.
² Conjunto habitacional na Zona Norte de Natal/RN. O significado do nome é controverso, mas sabe-se que o nome é tirado de uma tribo que viveu na serra panati.

One Response so far.

  1. ótimo texto. Parabens!!

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